quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Semideuses


Semideuses
.Fernando Pessoa em seu poema, ou melhor, Álvaro Campos, um de seus heterônimos, insatisfeito e sincero explodiu: - Só eu sou ignorante, desprezível, inconstante e vil,
Todos os outros-desabafou, irônico- são capacitados, seguros e perfeitos!

Mas, contendo seu repúdio, não ousou espernear, de fato, diante da multidão engomada de hipócritas e demagogos da ambiência na qual vivia. E com a astúcia de um poeta, calou-se por hora, para dar voz ao personagem, que expôs de forma explícita mas poética, a própria raiva que sentia pela vida.

Eu, todavia, sigo em passos lentos de aprendiz, dando voz ao papel impassível, que exporá meus pensamentos de inconformismo e levará com elegância minha denúncia. E por meio dele, deito e rolo; grito e esperneio; protesto com o dedo em riste contra todos em cuja cabeça lhes couber este chapéu. O chapéu da altivez, da arrogância, da presunção de sentirem-se deuses, desprezando e humilhando todos que se apeguem ao direito de serem, simplesmente, seres humanos. Pretensos deuses que infestam nossa sociedade e entronizam-se em nosso meio independentemente da classe social. Espalham-se como praga arruinando todo lugar por onde passam, e contaminam com rapidez os bons costumes, deixando seus vírus nas mentes pequenas, que, aos poucos manifestam os sintomas: sorriso amarelo, olhar frio, peito estufado, andar altivo, nariz empinado, fala áspera e muito medo de se aproximar do próximo.

Com o passar do tempo, essa doença chamada arrogância, vai se enraizando no coração do homem até gerar um mal terrível conhecido por ego que, se cresce, atrofia a mente e seca a alma. E nesse estágio, o ser humano não consegue mais viver no meio da sociedade comum. Ele isola-se do resto do mundo, incapaz de comunicar-se com alguém, porque o ego é uma doença degradante que deixa o cidadão surdo, cego e demente!

Supostos representantes divinos que infestam nossos templos e envergonham os que reconhecem nossa condição de reles mortais. Enchem o peito de vanglória como quem enche o pulmão de ar, e sem piedade arranca de nós o direito de manquejar, titubear, fraquejar, temer e tremer. Tiram-nos o direito de ser o que somos: pó e nada mais...

Deuses! Que piada! Não passam de meros humanos derrotados e trêmulos diante da falta de coragem de admitir suas fraquezas.
Coragem é isso!-diga aí Álvaro Campos; Fernandos e Pessoas; os inconformados e saturados com tanta hipocrisia. Digam aí medrosos, imperfeitos, fracos assumidos, valentes seres humanos que dão a cara á tapa, mas não forjam a verdade: NEM TODOS SABEM SER SERES HUMANOS!

Daí esse mundo decaído e feiamente frio... Um mundo cheio de mortos que pensam estar vivos; ossos e peles que andam em círculos, absortos e indiferentes por não possuírem alma. Pessoas de todos os cantos de sentimentos embutidos e mascarados; gente que chora ás escondidas pra que não lhe vejam os olhos inchados; gente que morre engasgada, mas nega-se á cuspir as mágoas que a sufoca; gente que prefere a ilusão de um sorriso á uma lágrima sincera; que se conforma com tapinha nas costas mas não encara um abraço amigo; gente que vive num mundo onde prêmio é garantido á quem melhor atua; num mundo onde não se vive, se representa; num mundo de gente que tem vergonha de ser gente.

Desejo um mundo onde os seres humanos parem de exigir dos outros o que não são. Um mundo que me aceite com todas as minhas imperfeições e não espere de mim o que não posso dar; um mundo que me deixe ser apenas eu, e me livre do fardo da perfeição.
Quero um mundo onde eu possa chorar sem ser criticado, falar sem ser julgado, chutar o balde sem ser recriminado, abrir o coração sem ser descriminado, usar o livre-arbítrio sem ser reprimido, seguir a minha vida sem ser constantemente cobrado.

Detesto me sentir um patinho feio, uma formiga fora do formigueiro, um peregrino sem pátria, um extraterrestre no planeta onde nasci.
A terra precisa voltar a ser a morada dos homens e deixar de ser a morada dos deuses. O mundo clama por homens, a Igreja clama por homens, Deus clama por homens !
Não temos mais amigos, porque cada um se julga perfeito demais para suportar as fraquezas do outro; forte demais pra aturar os fracos; sábios demais pra se juntar a pecadores...
E assim, os clubes se esvaziam, as escolas diminuem as turmas, as igrejas agregam mais bancos que gente, e ohomem vai ficando cada vez mais só.

Vivemos num mundo intolerante e impaciente, onde cada qual vê o outro como concorrente. Um mundo onde cada pessoa abarca o que lhe convém e vê todo o resto como supérfluo e sem valor algum; e nesse resto, infelizmente, vão centenas de seres humanos que a desumanidade joga no lixo da sua estupidez.

Pobres tolos! Tomam nossos púlpitos como arautos divinos com o coração repleto de soberba e vazio de Deus. Usam a Bíblia para abrir os olhos de seus ouvintes, quando os próprios não enxergam a verdade. Repugnam a fraqueza humana sem ao menos se dar conta que ela é a chave para o poder de Deus se fazer perfeito.
Rejeitar a fraqueza é despir-se da humanidade. E, se Deus quisesse trabalhar com seres poderosos, certamente teria recrutado seus anjos, no entanto, Ele preferiu aos homens. –Meu poder-esclareceu a Paulo- se aperfeiçoa na fraqueza.

Ao homem foi-lhe imposto um limite e quem tentar transpô-lo há de cair vencido.
O ser humano não consegue carregar o próprio fardo da humanidade, tentar ser Deus, acredite, dá muito mais trabalho.

Leila Castanha
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Imagem: Hércules juntando duas colunas: A união do mundo. Do artista e antropólogo espanhol Ginés Serrán Pagán.

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