sábado, 18 de setembro de 2010

Ambivalências


Heráclito, grande filósofo jônico pré socrático asseverou -, "tudo flui". Essa assertiva, que mais fortemente caracteriza sua filosofia, causou uma revolução na ambiência pensante na Grécia de seus anos. Posteriormente, alguns filósofos reagiram contra a afirmação do pensador de Éfeso, principalmente na pessoa do eleata Parmênides e nos anos clássicos com Platão, no apogeu da filosofia, por entenderem que, na verdade, não existe mudança, como Parmênides criam que “o ser é o não ser não é”, ou seja, não existe fluxo e nem mudança.
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Em ambiente geográfico/cultural totalmente diferente do culto ambiente grego, o Eclesiastes, geralmente considerado como escritos de Salomão, se mostra ambivalente ao abordar semelhante questão. O sábio pregador afirmou: “vaidade de vaidades! Tudo é vaidade”. Falando das coisas existenciais o Eclesiastes destacava sua efemeridade, lembrando muito o contínuo fluxo abordado por Heráclito. Porém, numa assertiva posterior disse ele: nada há de novo debaixo do sol – ideia que em muito se aproxima das teses de Parmênides da estaticidade do ser
Na contemporaneidade essas questões não foram apagadas, com Friedrich Nietzsche foi explicitamente abordada, principalmente em sua obra “A filosofia na época trágica dos gregos”,(1) na qual, elege Heráclito, o filósofo do devir, como o mais intuitivo dos filósofos, por ser aquele que teve a capacidade de assumir a realidade do movimento como verdade - tão clara à sua percepção que não podia ser negada. Em Emmanuel Mounier, o devir também é colocado em alta consideração, tanto que trata a sua filosofia como a filosofia da ação, anunciando a inadequação daqueles que invocam fatalidades naturais para privar-se do agir (2), e, quando acolhe a iniciativa da filosofia existencialista, por ser ela “uma reação da filosofia do homem contra os excessos da filosofia das idéias e da filosofia das coisas”, em outras palavras, em relação à negação a citada filosofia das ideias, apóia o existencialismo por ser essa filosofia, um anti determinismo ontológico. ..
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A questão da estaticidade e do devir ainda persistem na hodiernidade, porém não a abordaremos de forma abrangente, de maneira particular proponho investigarmos essa questão considerando a sociedade e os fenômenos sociais.
Olhando hoje para o atual modelo de sociedade, e comparando com a sociedade de alguns anos atrás, percebemos uma considerável mudança. Com isso podemos falar em rompimento de paradigmas. Podemos assumir que é perceptível a mudança nas vivências sociais e nos valores. Muitas ações consideradas virtuosas, hoje já não mais o é, e muito do que era antes considerado vil, hoje é tido como virtude. É percebida claramente a mudança nas vivências sociais e nos valores, e até mesmo algumas ações e costumes consideradas como rígidas, hoje não mais se repetem com tanta frequência. Pensando de maneira diferente, o cantor cearense Belchior, em uma de suas composições dita a seguinte frase:
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Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais.
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Ao falar assim, Belchior estava percebendo nos jovens a mesma tendência reacionária de seus patrícios. Apesar de admitir o novo, o compositor percebia que os jovens de sua geração se prendiam na mesma tendência passadista de seus pais. Fazendo uma análise no comportamento dos pais de hoje, podemos perceber uma mudança, ainda que leve. Os pais de hoje, como muitos homens e mulheres adultos, tentam copiar e absorver as ações, tendências e movimentos adolescentes, para não se sentirem velhos. Dando uma rápida olhada em programas de televisão, facilmente esta tendência se fará percebida. Percebe-se então, uma mudança no quadro descrito por Belchior, que destacava os pais de sua geração valorizando os modelos de sua época. Hoje, os pais estão a valorizar a cultura de seus filhos, para que, de alguma forma, se sintam jovens ou sejam percebidos como tal.
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Voltando a questão que iniciamos, lanço uma indagação, a saber: esse quadro, está mais em sintonia com as descrições de Parmênides ou com as de Heráclito?
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E se direcionarmos nossa análise para as instituições que fazem parte de nossa sociedade, em que situação as descreveríamos, como estáticas ou como dinâmicas? Em quais das citadas ideias filosóficas as identificaríamos?
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Se fizermos uma análise reflexiva sobre a atual situação das igrejas tradicionais, católica ou protestantes, possivelmente chegaremos a seguinte conclusão: as igrejas estão negando o seu passado e a sua identidade para copiar os modelos lançados pelas novas igrejas que se levantam. As atuais canções adotadas pelas antigas denominações protestantes servem como um elucidativo exemplo. Em quase todos os cultos, mesmo nas igrejas tradicionais ou pentecostal clássica, os reflexivos hinos dos hinários adotados por cada denominação histórica, no caso da igreja católica as canções sacras, estão sendo trocados pelas maçantes músicas de comunidades neo pentecostais, que visa no texto e na melodia, provocar a emoção repentina, em detrimento a reflexão aprofundada, como as encontradas nas composições que compõem os antigos hinários. Frente a essa realidade, qual seria a resposta para a questão lançada: a situação descrita corrobora as teses de Heráclito ou as de Parmênides?
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Indo por outro caminho, o cantor baiano Raul Seixas em sua canção fazendo parceria com Paulo Coelho “a verdade sobre a nostalgia, gravada no álbum Novo Aeon, vociferava:
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Tudo quanto é velho eles botam pr'eu ouvir
E tanta coisa nova jogam fora sem curtir
Eu não nego que a poesia dos 50 é bonita
Mas todo o sentimento dos 70 onde é que fica?
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Nesta música, Raul Seixas parece descrever na geração dos anos 70 certo apego ao passado, apego esse por ele repudiado. Seguindo o caminho contrário do que vivencia a igreja hoje, segundo o cantor baiano, o velho era tão valorizado que não dava espaço para o novo. Como já foi comentado, hoje, na igreja, a situação é inversa, em tempos hodiernos o novo é hipervalorizado, colocando de canto as velhas formas de se manifestar, e, seguindo esta tendência, as antigas e reflexivas canções foram quase que totalmente abandonadas.
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Comentando ainda sobre a igreja, facilmente se observa uma grande mudança no tratamento e no entendimento do conceito de culto. Em outros tempos, até pelo menos no inicio dos anos de 1980, o culto era um momento em que todas as ações eram feitas com reverência, com temor e tremor, visando adorar a Deus de maneira racional. Hoje a concepção de culto difere do entendimento de outrora. A igreja tem se tornado um lugar de entretenimento, e o culto é o momento em que as pessoas se relacionam socialmente, se afinam com as últimas tendências do mercado, e ainda, e quando se voltam para o alto, é para pedir auxílio com o fim de alcançar uma tão almejada prosperidade financeira. Em outras palavras, o culto, apesar de preservar o termo, deixou de ser culto.
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Salomão afirmou: Não removas os antigos limites que teus pais fizeram. (Pv 22.28). Entendo que, com essa afirmação, ele estava a indicar, que extrapolando os limites periclitamos. Desfazendo os marcos, corremos o risco de inaugurar uma situação caótica, pois, removendo os limites, ações e posicionamentos necessários para manter uma sociedade e suas instituições em ordem serão desconsiderados, dando vazão para todo o tipo de posicionamentos inadequados. Estou a crer que esses inadequados posicionamentos permeiam quase todos os ambientes e manifestações de nossa hodierna sociedade. Diante disso, a pergunta retórica continua: quem está mais próximo da realidade, Parmênides ou Heráclito. As coisas mudaram ou tudo sempre foi como agora percebo?
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Em meio a tanto trânsito, tanta mudança, ou aparência de movimento, nos deparamos nas Escrituras com uma forte afirmação: EU SOU O QUE SOU. Dirigindo sua mensagem a um povo finito, aquele que É o que É, afirmou: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós. (Êx 3:14) Percebe-se aqui a ausência de transição: EU SOU. Aqui, parece que Parmênides encontrara refúgio para a sua ideia. Porém, aquele que É em outro momento, é descrito por Jesus como alguém que se move. Na seguinte descrição Jesus faz-nos perceber a dinâmica do movimento descrevendo a situação daquele que É, e, semelhantemente a sua, pois Ele e o Pai são Um (Jo 10.30), vejamos:
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“ Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também” (João 5:17 ) .
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Na afirmativa de Jesus, percebemos um Deus que se move que está a agir. Em momento distinto, e também admitindo esse movimento, o apóstolo Paulo em uma carta aos irmãos coríntios faz com que o sentido, o propósito desse movimento se torne evidente.
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“E, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então também o mesmo Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos.(1Co 15.28).
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Parece-nos claro que em Cristo, Deus trabalha com o propósito de que todas as coisas nEle se harmonizem, fazendo-se tudo em todos. Parece que o movimento descrito nos trabalhos do Pai e do Filho, visa o encontro de tudo naquele que É , em “quem não há mudança e nem sombra de variação (Tg 1.17), com finalidade de encontrar repouso a quietude. Como que num arremate, o texto Marcos, parece distinguir o transitório do não movível, como aquilo que passará e aquilo que É:
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“Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão.” Mc13.31
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Diante de ideias tão ambivalentes, - podemos se apegar a uma tese desprezando a outra? Podemos ter como certas as assertivas de Heráclito, descartando as de Parmênides, ou se apegar nas convicções do filósofo do Ser desprezando aquelas do pensador do Devir?
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Com isso em mente, como trataremos as questões que se nos apresentam? Devemos nos posicionar diante dos fenômenos que se nos apresentam estranhos como fatos normais que sempre existiram, e que na verdade não se configuram como um novo problema, ou como novos fenômenos que precisam ser estudados a fim de que, entendendo-os possamos tratá-los com mais propriedade?
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Por mais exagerada que se pareça essa exposição, na verdade a idéia de que não existem novidades no quadro social é levada por muitos a sério. Em alguns ambientes intelectuais é apregoada, a partir de leituras isoladas sobre problemas levantados pelas gerações antigas, problemas esses que se aproximam em alguns aspectos dos problemas de nossos dias, a ideia de que tudo o que vivenciamos não é de fato uma novidade, pois de fato nada se move, tudo está fixo, baseado nas narrações lidas, nesses círculos, é apregoado que tudo o que hoje acontece, outrora já aconteceu. Porém, esse sentimento de falta de novidade não foi o mesmo nutrido por Jesus quando asseverou:
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“Ai de ti, Corazim, ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se fizessem as maravilhas que em vós foram feitas, já há muito, assentadas em saco e cinza, se teriam arrependido.(Lc 10.13)”
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No contexto, Jesus parece informar, que a atual geração, nas cidades em que estava a exortar, decaiu em incredulidade, sendo mais incrédula do que as antigas cidades tidas como antros da incredulidade. Portanto o movimento e a novidade, em Cristo encontram admissão. Portanto, como agir diante dos novos ou aparentemente movimentos e tendências? Devemos resignadamente acatá-los ou duramente nos posicionarmos contra eles?
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Apesar da importância de reconhecermos o movimento, não podemos desprezar a imutabilidade. As Escrituras descrevem a Palavra de Deus como imutável. Ao julgarmos as transformações devemos nos pautar pelo conselho de Deus, pois apesar constatarmos mudanças e o movimento, a justiça de Deus é uma justiça eterna, e a sua lei é a verdade.( Salmos 119:142 )
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Em meio a tanta confusão e a movimentos e tendências que parecem tirar do foco propósitos antes definidos, ficamos perdidos sem saber como nos posicionar. Ficamos em dúvida se o que se faz novo, na verdade não se passa de uma continuidade do que sempre existiu, com uma nova roupagem, ou de fato uma novidade que insulta os limites aceitáveis estabelecidos pelos antigos, fazendo-nos periclitar, colocando-nos em risco de inaugurar uma situação ainda mais caótica do que essa percebida pelos nossos sentidos.
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Não podemos julgar tendo por medida nossas próprias convicções. A Palavra de Deus deve ser nossa base crítica, ela deve sempre nos orientar para que possamos, mesmo envolvidos em ambivalências, nos posicionar adequadamente diante das questões que se levantam.
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Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? (Hamlet / William Shakespeare.)
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"Conheço apenas a minha ignorância." (Sócrates, mencionado por Diógenes Laércio)
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Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho.(Sl 119.105)

Lailson Castanha
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(1) NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na época trágica dos gregos. São Paulo: Escala, 2008.
(2) MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. 3. ed. Santos: Martins Fontes, 1974.

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